Vem um PARVO, e diz ao Arrais do Inferno:
Hou... daquesta!
DIABO
Quem é?
PARVO
Eu sou.
É esta naviarra vossa?
DIABO
De quem?
PARVO
Dos tolos
DIABO
Vossa!
Entrai.
PARVO
De pulo ou de voo?...
Ó pesar do meu avô.
Soma, vim adoecer,
e fui má-hora morrer,
e nela pera mi só.
DIABO
De que morreste?
PARVO
De quê?...
Samica de caganeira.
DIABO
De quê?!...
PARVO
De caga merdeira!
Má ravugem que te dê!
DIABO
Entra: põe aqui o pé.
PARVO
Houlá, não tombe o zambuco!
DIABO
Entra tolazo enuco,
que se nos vai a maré.
PARVO
Aguardai, aguardai, houlá!
E onde havemos nós de ir ter?
DIABO
Ao porto de Lucifer.
PARVO
Como?!...
DIABO
Ò Inferno. Entra cá!
PARVO
Ò Inferno?!... Eramá!...
Hio, hio, barca do cornudo,
beiçudo, beiçudo,
rachador d'Alverca, huhá!
Sapateiro da Candosa,
antrecosto de carrapato,
sapato, sapato!...
Filho de grande aleivosa,
tua melher é tinhosa,
e há-de parir um sapo,
chentado no guardanapo!
Neto da cagarrinhosa,
(...)
Chegando à Barca da Glória, diz:
Hou da barca!...
ANJO
Tu que queres?
PARVO
Quereis-me passar além?...
ANJO
Quem és tu?
PARVO
Não sou ninguém.
ANJO
Tu passarás, se quiseres,
porque, em todos teus afazeres,
per malícia não erraste:
tua simpreza te abaste
pera gozar dos prazeres.
Espera entanto per i:
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.
(...)
Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco.
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