08 maio 2008

ZÉ NABO!, ZÈ NABO!, ZÈ NABO!

Diziam que viera do Bié, à boleia na carga de um camião. Mas ao certo, ao certo, ninguém em Nova Lisboa sabia quem ele era efectivamente: onde nas-cera, que idade tinha, onde morava, o que fazia para além de vaguear o dia inteiro pelas ruas da cidade. Vê-lo uma vez era vê-lo todas as outras: calças e casaco coçados, camisa no fio, sapatilhas de lona, olhos no chão, braços cru-zados sobre a barriga, matando talvez a fome à custa da caridade alheia.
Chamava-se José. Mas para a miudagem daquele tempo, que estudava nos Colégios Alexandre Herculano, Adamastor e Dom João de Castro, era o Zé Nabo.
— Zé Nabo! Zé Nabo! Zé Nabo!
Ele não gostava nada de ser chamado assim. Como que desperto de re-pente do torpor em que vivia, fitava com raiva os que gritavam a alcunha detestável, corria-lhes no encalço, atirava-lhes pedras, bradando obscenidades de envergonhar um cabo de esquadra.
Quem estava sempre no grupo a gritar «Zé Nabo!, Zé Nabo!», tão destem-perada e persistente como os companheiros, era a Ca­tarina.
Catarina da pele branca e macia, dos olhos azuis cor do céu, dos lábios vermelhos como flores de buganvília, dos dentes certinhos como contas de missanga; Catarina das tranças louras, linda, atrevida, provocante, que repetia continuamente:
— Zé Nabo! Zé Nabo! Zé Nabo!
Ligeira como uma gazela, saia esvoaçando ao vento, sacola a dar a dar, corria aos saltos e aos ziguezagues, para não apanhar com as pedras que zu-niam de lado.

***
Um dia, melhor, uma manhã, José estava parado à porta do Dispensário.
Era a hora do almoço. Catarina e os colegas de classe saíam das aulas e preparavam-se para regressar a casa.
Alguém do grupo gritou, como de costume:
— Zé Nabo! Zé Nabo! Zé Nabo!
Foi a cena habitual: os insultos e os palavrões obscenos que não podiam faltar, José a correr e à pedrada, tentando agarrar qualquer um.
O grupo atravessou a avenida: Catarina atrás (que se deixara atrasar dessa vez), José ganhando vantagem, já quase colado a ela.
Um buzinão imenso, um sopro de estarrecer, e o machimbombo que vinha da Alta passava desenfreado a caminho da Baixa.
Num ápice, com as mãos nodosas e grandes, José agarrou Catarina, apertou-a contra as pernas, manteve-a junto de si, salvando da morte o seu algoz.
— Menina sem coração, que ias sendo atropelada... — disse depois, tam-bém assustado, mas sem rancor.
Catarina olhou-o de alto a baixo (as calças e o casaco coçados, a camisa no fio, as sapatilhas de lona); com os olhos azuis cor do céu, olhou-o demo-radamente, mas já sem medo, já confiante, já segura. Ainda com o coração a bater no peito como um tambor, pôs-se nos bicos dos pés, estendeu-lhe os braços, cobriu-o de beijos.
Os dois continuaram a encontrar-se: ela cada vez mais linda, ele cada vez mais só; ela sorrindo nos dentes certinhos como contas de missanga, ele descobrindo finalmente o conforto de um afecto.
Cumprimentavam-se de longe:
— Olá, Senhor José.
— Olá, Catarina.

Inácio Rebelo de Andrade, in Quando o Huambo Era Nova Lisboa, Vega, Lisboa, 1998 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor)

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