Lá por 1905, mas nada há mais difícil do que relacionar tempo e eternidade, ou fixar-se simultaneamente nos dois planos, - os grandes pintores o fazem no olharde suas figuras -, mas, enfim, por essa altura comecei a tomar atenção no belo globo que rodava diante de nós, e atentar descobrir lugar aonde me agradasse descer para principiar minha vida. A meu lado, outros faziam o mesmo, e até discutíamos os méritos de um e outro ponto, mas sem voz, quanto me lembro, porque o nascer tira muito a memória, como depois o vim a reconhecer, concluiu Platão. Ou deu por concluído quando talvez lhe fosse seu inicial pensamento: artifícios de escritor - e passemos adiante. Quando, voluntária ou involuntariamente, quem o sabe, gostei de, a cada volta do globo, ver surgir de novo nossa península ibérica, deu-se um fenómeno curioso, o mesmo que, maquinado pelos homens, se veio a chamar zoom: À outra volta, a península estava maior, só havia uma nesga de mar de um lado e outro e uma cadeia de montanhas, bem em relevo, a limitando para o norte; ou a estou agora a ver assim, porque, donde eu a contemplava, não havia nada que fosse acima ou baixo: simplesmente era. Na outra volta, a metade que fosse depois agora de meu lado direito desaparecera, como desaparecera toda a faixa sul. Fixava-me, de facto, no que aprendi mais tarde a chamar Portugal. Curiosamente, a metade sul dele reapareceu na volta seguinte, como se quisessem que eu, mais esclarecido, pudesse escolher entre a tal de cima e esta aqui de baixo. O mar era uma maravilha de verde, azul e oiro - e era o do Algarve, claro está: Nunca mais o vi, nem na Piedade, nem na Rocha, e houve uma vez uma extensão dele no Cabo Branco da Paraíba; Onde o tinha sempre era nas páginas do Teixeira Gomes: O Poeta, ali, se lembrava do que vira do céu e decerto a Ferragudo escolheria para iniciar sua existência na terra. Não foi o meu caso: o norte tornou a aparecer, ainda mais próximo. E, para não cansar o meu leitor, se o houver, - mas o que estou escrevendo o escrevo para mim e para quem amo - o que, depois, surgiu, num máximo de profundidade, foi um encontro de rios, um que corria para oste, outro que vinha, mais modesto, do sul e do lado e tinha por nome o de Águeda, de que talvez eu tivesse tomado a resolução de ter, como um de meus padroeiros Santa Águeda; sou muito muito ecuménico, deve dizer-se, já que o outro é Omulu, de origem nigeriana e também orixá do terreiro de Olga de Alaketu, minha Mãe de Santo em Salvador da Bahia. Ao largo do rio, na beira de baixo, se alargava uma rua de casas baixas, havia um largo de altas faias, para um canto mais em altitude um cemitério (estou dando a tudo os nomes que mais tarde aprendi) que logo vi, de dentro, como lugar de volta ao céu em que pairava eu - e o foi para minha irmã Estefaninha Estrela, vejam só que nome, Estrela, como se lhe adivinhassem o destino. Mas, embora estivesse muito interessado por tudo, o que me prendeu mesmo foi que, primeiro ao lado do Águeda, depois dele se afastando, corria uma larga estrada com, de um lado e outro, mimoseiras em flor; curiosamente, o aroma que delas vem, e todos os anos a primavera o renova, esteja eu onde esteja em clima nosso (mas na realidade, qual é o meu?), é sempre o de quando o senti pela primeira vez, sinal, ao que penso, de que morrer é só vida e que sempre o terei comigo por mais que o mundo acabe. Para me regalar a vista, terei as papoulas que logo noutra volta se mostraram em mato de giestas, com que depois se espantava, nas maias, o diabo, como se, coitado, no caso de existir não o atraísse tal alegria de cor, como comigo aconteceria e ainda acontece. Decidi, pelas faias e pelos rios, pelo amarelo e pelo rubro, pelo perfume e pelo cemitério de Santo Cristo que era ali mesmo que eu queria nascer.
SILVA, Agostinho da. Caderno de Lembranças. Lisboa: manuscrito, 1986.
(prenda da Associação Agostinho da Silva aos sócios, em folhinha anexa ao Boletim Folhas à Solta, de Fevereiro de 2006.)
16 fevereiro 2006
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