NÃO CONSIGO CRER de outra maneira: a serenidade e a lucidez, além de raras e preciosas de per si, dificilmente as encontremos de mãos dadas no mesmo sujeito.
Todavia – privilégio meu – penso ter contemplado de perto esta raridade e retirei daí a convicção de que as pessoas serenas e lúcidas descobriram o segredo de fazer coincidir a liberdade com o destino. São muito poucas, essas pessoas!
Em contrapartida, abundam, para mal dos seus e dos nossos pecados, aquelas que nem lampejos de lucidez produzem, que nem vestígios de serenidade nos deixam vislumbrar, sempre infelizes e sempre lamentosas. Dê-se de barato que a algumas o destino parece apostado em fazer-lhes a vida negra, mas como regra, o que se nota sem sombra de dúvida é que é o infeliz que funda o seu próprio inferno, mantendo-o continuamente activo e permanentemente doloroso.
Paradoxalmente, se é que há paradoxo nisto, conheci gente que, apesar de a fortuna lhe sorrir e os fados se manterem invariavelmente favoráveis, sempre a lamúria jorrava pronta e abundante e a máscara sombria da infelicidade fazia ignorar o rosto que a natureza cuidara em dar-lhe.
Nestes, e também naqueles que conquanto não se queixassem do destino tinham igualmente um divórcio litigioso e evidente com a serenidade e uma incapacidade insanável de conquistar a lucidez, vi ou quis ver que a constante das suas vidas era invocarem a todo o momento a liberdade, que todavia desconheciam, assim se iludindo, deixando passar a vida sem terem mão no destino. A muitos de todos estes ouvi eu amiúde falar de livre-arbítrio, conceito sacerdotalmente demasiado abusado por quem da missa não sabe sequer o ámen…
Livre-arbítrio! E se, para além do sim e do não – ou do zero e do um, tratando-se de cibernética – pouco mais ficar à disposição do desejo que não conseguiu ser vontade?
Para iludir isto, há quem se ufane do talvez, mas tenho para comigo que isso do talvez é falta de coragem para dizer não ou timidez para pronunciar o sim. Esta timidez (ou cobardia) remete-nos de novo para o busílis, sem que nos alheemos que os portugueses, usando a cernelha ou a bolina, fogem ao regulamento com o proverbial «nim», característica muito nossa, que leva àquela anedota que diz que todos os computadores têm memória por virtude de não terem sido inventados por portugueses; se o tivessem sido, não teriam memória, mas apenas uma vaga ideia. É o vamos andando, pouco mais ou menos.
É o esperar que o capataz decida e o tempo faça o que o vento sopra. Ir à bruxa, esperar por um milagre, jogar no euromilhões. Tranquilamente, como se todo o tempo fosse de cesta; sem qualquer lucidez, porque a noite é certa; sem serenidade, porque a ideia é vaga; sem liberdade, porque o fato aperta.
Abdul Cadre
3 comentários:
Os meus cumprimentos pela devida distância e pela inquietante proximidade com que nos descreve: Mas há novidades que escapam... e ainda bem... que têm escapado à vigilância da autocensura que herdámos dos antigos regimes do medo... das paredes com ouvidos.
A AIDGLOBAL apresenta o espectáculo de solidariedade O FADO ACONTECE que decorrerá no dia 10 de Novembro, pelas 22h00, no Forum Lisboa. Celeste Rodrigues, Raquel Tavares, Ana Sofia Varela, Sofia Amendoeira, Hélder Moutinho, Ricardo Ribeiro, Artur Batalha, Luís Pinheiro, Luís David. Mais informações em www.aidglobal.org
Procuro no interior do meu universo, as veredas conducentes à consciência plena da liberdade individual que me permita interpretar, aceitar ou transformar o mundo. A minha serenidade é a lucidez de crer que este é instancialmente o melhor dos mundos possíveis, e que eu, simples figurante no palco do mundo,olvidarei o desencanto e a decepção numa função de actor tranquilo, mas capaz de afectar pela verdade da minha representação a ordem das pequenas coisas.
EF
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