VIA LÁCTEA
COSTUMAVA DIZER o professor Agostinho da Silva que somos estrelas de incomparável brilho. Que pena, termos tanta dificuldade em acreditar nisto. E, no entanto, o brilho vê-se nos olhos quando o peito arde sem constrangimentos.
Mas eis que se torna uma necessidade permanente avivar a chama, visitar o interior, varrer as cinzas e encher o lugar de alegria.
É no mais profundo do peito que nascem e morrem todos os sentimentos. As lágrimas podem lavá-los, mas também molham os bagos de amor que são os carvões da fogueira que nos permite brilhar, prejudicam a combustão, enchem de fumo o nosso entendimento e a tristeza vem e ofusca-nos o olhar.
Ver no outro o brilho verdadeiro que em nós imaginamos chama-se EUCARISTIA – palavra derivada do grego, com o significado etimológico de «o bem do amor» –, sendo que o amor não é nem nunca foi o que o homem pós-moderno diz, mas aquilo em que ele não quer acreditar. É por isso que fala de fazer amor, como se amor fosse artesanato, confundindo apelos da alma (que traz amordaçada) com ânsias da carne (que traz à rédea solta); dar-se ao outro pelo outro é-lhe completamente incompreensível. O TER infectou-o tanto por dentro que o SER, cada vez mais angustiado, se afasta cabisbaixo pela estrada da mágoa e da tristeza.
O amor – não uma sua qualquer particular manifestação menor – é a negação da morte, como se diz com mestria no soneto de Antero de Quental intitulado «Mors – Amor», quando o corcel negro diz «eu sou a morte» e o cavaleiro lhe responde: «eu sou o amor».
É certo que no preciso momento em que nascemos começamos a morrer e que em todos os dias desta nossa peregrinação nascemos e morremos continuamente. Afinal, viver talvez seja matar a morte de cada dia.
Quando as estrelas, em vez de brilharem, se ofuscam, tendem a colapsar sobre si mesmas. É isto que acontece ao homem preocupado apenas com o seu umbigo. Ávido de prazer, ele desconhece a alegria e julga poder afastar a dor; não pode, a dor é uma inevitabilidade, o que é opcional é o sofrimento, que é o carrasco da alegria.
Como imagem para o nosso colapso de estrelas que não ousam sê-lo, olhemos algo que se pôs de moda, fazer implodir velhos edifícios para dar lugar a outros, presumidamente melhores. O colapso do homem velho seria, nesta condição, uma coisa boa, isto é, se melhor construção viesse, mas enquanto vivermos de fora para dentro, tenhamos a certeza que nem aos caboucos meteremos ferro, antes veremos embargada a construção do homem novo, tão desejada em tempos de exaltação, tão tumular em tempos de apatia. A construção do homem novo, daquele que há-de viver de propósito e brilhar por condição, que viverá de dentro para fora, com o peito a arder, é uma promessa de vida e de futuro.
Podemos antever isso, sempre que em noite amena e estrelada nos deitemos em chão despido, extasiados com a Via Láctea, a que pertencemos.
Abdul Cadre
25 novembro 2007
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1 comentário:
Excelente texto sobre a verdade de ser. Todavia sobre a miopia da condição do homem actual eu diria ainda: "aquilo em que a falácia da pós-modernidade o inibe de acreditar......".
Flávio M.
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