08 outubro 2007

...Tudo isto é Fado


Variações de pluma

Tento olhar os outros, não como portadores de qualidades e defeitos, mas como sujeitos de características. Destas, haverá das que goste e haverá das que não goste. Aos amigos de que goste só digo as características de que não goste a pedido; dos outros, afasto-me ou mantenho uma distância prudente

Para com as figuras públicas uso um critério semelhante, com esta ressalva: das que não gosto dou sinal disso sempre que a ocasião se proporciona; das que gosto, apenas gosto e, por motivos vários, nem sempre lhes presto a vénia que mereçam (segundo a minha bitola, claro).

Por vezes (e a contragosto) nem sequer o meu gosto consegue ser integral. Por exemplo: gosto das gargalhadas do Dalai Lama, do seu jeito descomposto de menino traquinas; gosto do que diz e gosto do que escreve e neste meu gostar nada pesa o facto de ele ter recebido o Prémio Nobel da Paz, porque se alguma influência daí viesse seria de diminuição no apreço. Menahem Begin, que um dia teve um mandado de prisão internacional por terrorismo, emitido pelas autoridades britânicas, ele que foi um criminoso da pior espécie, um genocida, recebeu em 1978 o famoso galardão, único Nobel gerido pela Noruega, enquanto todos os outros são da responsabilidade da Academia Sueca. O Prémio Nobel da Paz é aquele que se mostra mais permeável ao lobismo e aos ditames do Departamento de Estado dos USA.

Aceito que o Dalai Lama seja hoje mais do que nunca um homem de paz e um homem que contribui para o Bem. Mas como “nunca” me iludo, que é o meu modo corrente de me isentar às desilusões, além de procurar andar tão bem informado quanto possível, não tenho dúvidas de que por trás da atribuição do Nobel da Paz ao Dalai Lama esteve o dedinho americano, coisa que na altura muitos comentadores referiram, inclusive em jornais de topo dos states. É que a coisa, para além de ter sido uma forma de pressão sobre a próxima potência administradora deste condomínio fechado chamado Terra – a China – , a decisão facilitava as relações internacionais ao não-reconhecido Governo do Tibete no Exílio (GTE), que tem sede em Daharamsala (Índia) e é chefiado por Sandhong Rinpoché.

Em 2001, o Dalai Lama transferiu para o GTE os seus poderes políticos e administrativos. Acho que fez muito bem e também acho que o deveria ter feito há muito mais tempo, mas ao que parece não andaria até aí nem bem inspirado nem bem aconselhado, já que dava o flanco às acusações de teocracia tibetana. Todavia, onde ele terá andado pior – pragmatismo político? – foi no apoio público e fervoroso ao mandarim Deng Xiaoping (ou Teng Hsiao-ping), acrescido do ruidoso silêncio da não-denúncia do massacre de Tiananmen (Praça da Paz Celestial), em 4 de Junho de 1989. Este silêncio incompreensível causou enorme perplexidade entre os admiradores do Dalai Lama mais esclarecidos e menos comprometidos com as problemáticas da diplomacia. Talvez tudo isto tenha sido uma questão da tal Real Politik que tantos comentadores invocam condenatoriamente no respeitante aos governos que não recebem o Dalai Lama como chefe de estado, v.g. o governo português.

Real Politik será também a defesa que faz o Dalai Lama, desde 1988, renegando o seu próprio Plano de Paz em Cinco Pontos, apresentado ao Congresso dos USA em 1987, de que o Tibete deve manter-se associado à China, não como um estado independente, como querem alguns exilados (e sobretudo os comentadores encartados do ocidente), mas como uma região autónoma.

Independentemente de serem ou não realistas e justas estas posições revistas e actualizadas, tudo isto criou divisões insanáveis entre os exilados tibetanos, cujas consequências não têm sido previstas nem comentadas pelos produtores de ruído do costume.

Abdul Cadre
6.10.07

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